segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Deus também é negro

Trago no sangue uma África.
O reboar de tambores, a ponta afiada de
lanças, os riscos coloridos realçando a pele e, na boca,
o gosto atávico dos frutos do Jardim do Éden.
Na alma, as cicatrizes abertas de tantos açoites,
o grito imperial dos caçadores de gente, o balanço agônico
da travessia do Atlântico e, nos porões, a morte ceifando
corpos engolidos pelo mar e triturados pelos dentes
afiados dos peixes.

Sou filho de Ogum e Oxalá, devoto de Iemanjá, a quem
elevo as oferendas de todas as dores e cores, lágrimas e
sabores, o choro inconsolável das senzalas, a carne
lanhada de cordas, os pulsos e os tornozelos
a ferros, a solidão da raça.

Sou escravo e, no entanto, senhor de mim mesmo,
pois não há ferrolho que me tranque a consciência nem
moralismo que me faça encarar o corpo com os
olhos da vergonha.

Tão povoado é o céu de minhas crenças, que não
rejeito nem mesmo a santeria do clero.
Antes, reverencio o cavalo de São Jorge, transfiro aos
altares a devoção aos meus orixás, lanço ao rio
a Virgem Negra na fé de que, entre tantas brancas,
trazidas no andor do senhor de escravos,
chegará o tempo em que a minha será Aparecida e,
a seus pés, também os joelhos dos brancos haverão de se dobrar.

Sou liberto e, no fundo das matas, recrio
um espaço de liberdade, defendendo com espírito guerreiro
o meu reduto de paz.
No quilombo, volto à África, resgato a força mistérica
do meu idioma, celebro reisados e congadas

Cidadão brasileiro, ainda luto por alforria, empenhado
em abolir preconceitos e discriminações, grilhões forjados
na inconsciência e inconsistência dos que insistem em fazer
da diferença divergência e ignoram que Deus é também negro.