segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Homo Homini Lupus

Caminhava eu, certa vez, pela estrada solitária
e agreste que me conduzia da cidade à quinta,
onde então residia.
Embora me fosse ela muito familiar, eu a
percorria cautelosamente, já porque, além
de estreita e tortuosa, era construída
sobre uma vertente alcantilada, já porque
a escuridão da noite não me permitia divisar
sequer o solo onde pisava.
Avançava, assim, atento em não afastar o pé
da estrada, quando súbito rumor me
desviou a atenção.
Apurei o ouvido e pude perceber que alguém
emergia da curva além e, a passos lentos
e graves, se movia em minha direção.
Recordei-me, então, de que, na noite
precedente, um grupo de malfeitores
assaltara certa loja
da cidade e viera esconder o produto
do roubo naqueles sítios desertos.
Bastou-me essa recordação para que logo me
confiasse a estranhos pressentimentos.
Não obstante, continuei a andar em direção
ao vulto, ao mesmo tempo em que ele, resoluto,
como se abrigasse no íntimo um sinistro propósito,
marchava ao meu encontro.
Tive, então, ímpetos de recuar, já que,
naquela situação, não havia outro meio de
fugir ao perigo, cada vez mais iminente.
Mas, ia já alta a noite e importava-me,
a todo custo, chegar a casa, aliás já bem
próxima, onde esperavam por mim
os meus familiares.
Era, pois, inadmissível retroceder:
um supremo apelo aos brios de homem
encheu-me de coragem, dessa coragem que não
passa de uma fuga para a frente, e, então,
decidi-me a avançar.
Quando já me encontrava diante da estranha
personagem, pronto para um gesto de defesa,
soltei um profundo suspiro, pois a
figura monstruosa que eu idealizara não
passava de um burro, um pacato burro...
Apenas me refiz do susto, concluí, surpreso,
que a insignificante ocorrência, cujo
epílogo tinha algo de cômico, me
oferecia, não obstante, ensejo
a amargas reflexões.
Com efeito - indaguei melancolicamente -, por
que, há pouco, me dominava o sentimento
do temor, ante a perspectiva de defrontar-me
com o irmão homem?
E por que razão agora me sinto tranqüilo
e seguro, junto ao irmão burro?
Acaso, não é o burro o irracional e o homem
o racional?
Sim, respondi-me, por isso,
precisamente por isso!
Um é manso por instinto, enquanto o outro
é mau por reflexão.
Daí, talvez, aquela dolorosa sentença com
que ilustre sábio traduziu seu extremo
desencanto dos homens:
"Plus je connais les hommes,
plus jaime les bêtes"
(quanto mais conheço os homens, tanto mais
amo os animais).
Todavia, não é lícito desesperar do homem.
É certo que ele se degradou, por aberração
dessa racionalidade de que tanto se orgulha.
Mas a degradação gerou a dor que o crucia,
a dor iluminar-lhe-á a mente e, por virtude
dela, ele haverá de redimir-se. É da lei.