domingo, 21 de fevereiro de 2010

O TEMPO PASSOU E ME FORMEI EM SOLIDÃO

Sou do tempo em que ainda se faziam
visitas. Lembro-me de minha mãe mandando a gente caprichar no banho
porque a família toda iria visitar algum conhecido. Íamos todos
juntos, família grande, todo mundo a pé. Geralmente, à noite.
Ninguém avisava nada, o costume
era chegar de paraquedas mesmo. E os donos da casa recebiam alegres a
visita. Aos poucos, os moradores iam se apresentando, um por um.
– Olha o compadre aqui, garoto!
Cumprimenta a comadre.
E o garoto apertava a mão do meu
pai, da minha mãe, a minha mão e a mão dos meus irmãos. Aí chegava
outro menino. Repetia-se toda a diplomacia.
– Mas vamos nos assentar, gente.
Que surpresa agradável!
A conversa rolava solta na sala.
Meu pai conversando com o compadre e minha mãe de papo com a comadre.
Eu e meus irmãos ficávamos assentados todos num mesmo sofá,
entreolhando-nos e olhando a casa do tal compadre. Retratos na parede,
duas imagens de santos numa cantoneira, flores na mesinha de centro...
casa singela e acolhedora. A nossa também era assim.
Também eram assim as visitas,
singelas e acolhedoras. Tão acolhedoras que era também costume servir
um bom café aos visitantes. Como um anjo benfazejo, surgia alguém lá
da cozinha – geralmente uma das filhas – e dizia:
– Gente, vem aqui pra dentro que
o café está na mesa.
Tratava-se de uma metonímia
gastronômica. O café era apenas uma parte: pães, bolo, broas, queijo
fresco, manteiga, biscoitos, leite... tudo sobre a mesa.
Juntava todo mundo e as piadas
pipocavam. As gargalhadas também. Pra que televisão? Pra que rua? Pra
que droga? A vida estava ali, no riso, no café, na conversa, no
abraço, na esperança... Era a vida respingando eternidade nos momentos
que acabam.... era a vida transbordando simplicidade, alegria e
amizade...
Quando saíamos, os donos da casa
ficavam à porta até que virássemos a esquina. Ainda nos acenávamos. E
voltávamos para casa, caminhada muitas vezes longa, sem carro, mas com
o coração aquecido pela ternura e pela acolhida. Era assim também lá
em casa. Recebíamos as visitas com o coração em festa.. A mesma
alegria se repetia. Quando iam embora, t ambém ficávamos, a família
toda, à porta. Olhávamos, olhávamos... até que sumissem no horizonte
da noite.
O tempo passou e me formei em
solidão. Tive bons professores: televisão, vídeo, DVD, e-mail... Cada
um na sua e ninguém na de ninguém. Não se recebe mais em casa. Agora a
gente combina encontros com os amigos fora de casa:
– Vamos marcar uma saída!... –
ninguém quer entrar mais.
Assim, as casas vão se
transformando em túmulos sem epitáfios, que escondem mortos anônimos e
possibilidades enterradas. Cemitério urbano, onde perambulam zumbis e
fantasmas mais assustados que assustadores.
Casas trancadas.. Pra que abrir?
O ladrão pode entrar e roubar a lembrança do café, dos pães, do bolo,
das broas, do queijo fresco, da manteiga, dos biscoitos do leite...
Que saudade do compadre e da comadre!